Subida

Maude Branscombe in de rol van Ophélia, drijvend in het water, José Maria Mora, c. 1880

Passo pela porta e já começo sentir o frescor do prédio. Fresco, sempre fresco, independente de como esteja lá fora. Fresco no inverno, fresco no verão. Em seguida ouço o barulho da porta de ferro batendo. Começo a subir os três lances de escada que me separam dela. Durante a subida vou alternando o apoio entre o corrimão, espesso com borda de granito, e com a parede, feita com textura em semicírculo, criada a partir do movimento dos braços do pedreiro. Aquele prédio tem muito trabalho feito, porta de ferro, chão em granito. Os lustres que enfeitam os corredores não se acham mais.

Subo os degraus encaixando os pés onde estão mais gastos. Gostoso sentir a pisada dos outros. Eu já até adivinho o que ela vai falar quando me ver.  Só não sei se respondo ‘tudo bem’, ‘ok’ ou ‘tá bom’. Só sei que não vou dizer ‘por que?’.

Nos corredores o mesmo cheiro de comida se misturava com o frescor, só muda o tipo. Há muito tempo costumava ser de carne de panela ou de algum molho ou de sopa ou de pão. Hoje são outros cheiros Não sei dizer quais são. Também os corredores costumavam estar livres de coisas. Hoje vejo sapatos encostados nas portas e brinquedos e mercadorias e móveis.

Hoje tem mais gente morando em cada apartamento. Meu tio se orgulhava que no passado só tinham famílias no prédio. De uns tempos pra cá é um amontoado de gente, de bolivianos, paraguaios, chineses, paquistaneses, muçulmanos e migrantes do Brasil.

Talvez por isso não reconheça mais os cheiros. Esse é um dos apartamentos que meu tio-avô me deu depois de morrer. É o que eu mais gosto, uma sala, uma cozinha – com área de serviço aberta que avança da parede e fica pendurada no nada tem apenas um tanque de cimento – um banheiro com banheira daquelas de ferro e um quarto. Assim mesmo, nessa ordem. Uma linha reta. E ela estará no final para dizer o que já sei.

Quando termina um lance de escada se abre um corredor. São sete passos para eu chegar no outro lance. Abro os braços porque sei que caibo perfeitamente no corredor. Vou andando de cabeça baixa com as duas mãos encostadas nos semicírculos feitas pelos pedreiros há décadas.

De vez em quando minha mão esbarra no cimento. A cada dia que passa tem mais falhas na parede. Não me importo, só me importo de ir bem devagar para ouvir os ruídos vindos dos apartamentos. Agora não tem muito porque os moradores estão no trabalho. Vou ouvir o que tenho que ouvir com poucas testemunhas, posso até gritar que poucos irão escutar o meu desespero.

No andar de cima ouço uma porta abrir, vou cruzar com alguém. É uma mulher que provavelmente vai buscar as crianças no colégio. Hoje eu adivinho tudo porque tenho certeza o que ela vai me dizer. Só não adivinho como eu vou descer essas escadarias depois de ouvir o que terei que ouvir.

Nunca mais vou poder colocar a cara no meio daquelas pernas grossas. Quando ela falou o que tinha que ouvir fiquei olhando para seus olhos e seu nariz arrebitados vermelhos. Não disse o que tinha que dizer. Só virei as costas e me pus a subir os dois lances que faltavam para chegar no último andar.

Parei na última porta no final do corredor que dá acesso à caixa d´água. Parei, voltei a descer tudo de novo. Só vou parar quando ouvir a porta do meu apartamento fechar. Se eu estiver no andar de cima eu continuo subindo. Se estiver num andar abaixo, desço de olhos fechados até encontrar o calor da rua. Sei que vai ser assim porque hoje eu já sei de tudo.

Imagem: Maude Branscombe in de rol van Ophélia, drijvend in het water, José Maria Mora,c. 1880

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