Saído de mim

Hand, Sally Lohr, c. 1920 - c. 1950


Quando não está muito calor, nem chovendo, nem muito frio, Mariana costuma passear nas ruas
perto do trabalho para espiar o comércio com o tempo que resta depois de almoçar. Mas naquele dia
de muito calor, a moça resolveu quebrar a rotina e enfrentar a rua escaldante. A quentura daqueles dias não dava trégua, dia e noite com a mesma sensação de abafado. Dormir era uma tortura. Comer era por necessidade. Os únicos prazeres do dia eram o chuveiro, o ar-condicionado do trem e do ônibus e as diversas lavadas da cara na pia durante o trabalho. O prazer de ser mãe tinha dado um tempo, aguentar os filhos colados a ela na poltrona era um estorvo.

As vitrines não eram as mesmas nos dias de calor e de céu sem nuvens. Para observar os produtos,
era necessário tirar os óculos de sol e quase encostar a cara na vitrine para ver os detalhes. Do lado
da rua em que o sol batia nos vidros era impossível enxergar algo com nitidez. Naquela tarde a
única loja a dar conforto para Mariana foi uma de bugigangas chinesas. Mariana costumava descartar aquela loja antiga do seu passeio, pois considerava a vitrine desorganizada com centenas de coisas à vista, muitas delas empoeiradas e com as embalagens queimadas pela luz do sol. Aquelas centenas de mercadorias de todos os tipos, colocadas sem nenhuma organização, lógica e apertadas nas prateleiras, incomodava Mariana. Ela preferia vitrines com poucas coisas e que lhe dessem algum sentido. Enquanto ela olhava um pendrive esperava ao seu lado vê-lo acompanhado de um teclado ou um mouse. Assim como numa loja de roupa, uma camiseta estaria perto de uma calça ou de outra camiseta. Mas não, na loja dos chineses, ao lado do pendrive estava uma caixa de incenso.

Hand, Sally Lohr, c. 1920 - c. 1950

A dor, mais do que ela, a lembrança da dor, tirou toda a concentração de Mariana. Sua atenção já se mesclava com as mercadorias e com as sensações sentidas na madrugada que ainda estavam nela.

Perdida por perdida, Mariana resolveu abrir mão da sua expectativa organizacional e começou a ver os ‘absurdos’ – segundo ela – expostos na vitrine. Ao lado de um canivete estavam canecas. Ao lado de um cantil, várias xuxinhas. Custava colocar os canivetes ao lado do cantil?, murmurou a moça. Suas observações começaram pela parte debaixo da vitrine e foram subindo. Só pararam na penúltima prateleira. Quando sentiu uma fisgada no pescoço. Imediatamente lembrou-se da noite mal dormida por causa do calor e que no meio da madrugada foi acordada por ela algumas vezes. Com os dedos, amaciando o músculo, tentou acabar com o dolorido. Espremia o pescoço a ponto de doer mais do que a dor, mas não conseguia chegar no sofrimento, que mais parecia um arame espetado no pescoço que ia até o começo do cérebro. A dor, mais do que ela, a lembrança da dor, tirou toda a concentração de Mariana. Sua atenção já se mesclava com as mercadorias e com as sensações sentidas na madrugada que ainda estavam nela. Nesse ínterim, Mariana encontrou-se no reflexo da vitrine. Olhou-se como e quanto pôde. Não aguentou muito. Não queria enfrentar o que começava a sair dela. Saiu caminhando pelo sol, com dor e tudo. Só parou para olhar as horas. Faltava um bocado para retornar ao trabalho. Poderia procurar outros artifícios para queimar o tempo de sobra, tomar um sorvete, comprar pão para a janta. Mas não, Manuela começou a sentir nostalgia da sua mesa do escritório onde se encaixaria perfeitamente e do computador, onde diria sim ou não e ele a obedeceria.

Imagem: Hand, Sally Lohr, c. 1920 – c. 1950

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