É para cá que venho quando estou com problemas. Dessa vez estou aqui por causa daquele alemão. Aquele bunda mole não entende que se fecharmos a planta de São Bernardo e transferimos a produção para a Índia o lucro pode cair no começo, mas sobe a longo prazo.
Esse alemão cagão tem medo de sindicato e de imprensa. Antigamente os alemães não eram resignados como esse dai. Pior de tudo é que vai calhar de perder meu o bônus. Agora não tem mais conversa.
Não tenho muito o que fazer. Só baixar a cabeça e ficar por aqui algumas horas e iniciar o meu ritual. Entro no quarto, fecho imediatamente as janelas, apago tudo. O que sobra são alguns filetes de luz. Deixo o celular desligado embaixo do travesseiro. Para encobrir o barulho da Marginal Pinheiros, ligo a hidromassagem com água bem quente.
Assim, na escuridão, posso sentir o vapor entrando pelo quarto e ocupando todo o vazio. Silêncio total. De vez em quando quase total. Muito raramente, as suítes vizinhas são ocupadas por casais que aproveitam a hora do almoço para outras coisas. É o caso de hoje. Ligo o chuveiro com água pelando. Mais vapor.
Para mim todo problema tem uma solução. Mas a presença desse alemão na minha vida parece não ter. Se eu tentar me explicar com o pessoal da matriz vou me queimar. Estou totalmente na mão desse cara.
No momento, a saída é esperar o vapor descer. Já está perto. O teto de espelho parece bem embaçado e o filete de luz mostra metade do quarto ocupado. Parece até um instrumento de precisão, poderia ser chamado de vaporômetro.
Portanto é hora de deitar na cama gigantesca e tirar peça por peça. Sapato fora, cinto desapertado, calça tirada. Chega a vez de desabotoar a camisa. Mas só começo quando o vapor estiver à beira das narinas. Já dá para sentir o calor e o cheiro salgado da umidade. Respiro mais fundo para antecipar o processo e começo a desabotoar um por um, docemente.
De cima para baixo, um por um. Sinto a costura do caseamento. Esfrego a unha na costura para sentir a aspereza em conflito com o toque sedoso do tecido da camisa. Aspereza, sedosidade e umidade, juntas.
O alemão já tinha se desfeito no meio do vapor até que meus dedos chegaram na última casa. Ali eles encontraram um obstáculo. E meus momentos de previsibilidade se acabaram.
Corri para abrir cortinas e janelas aproximei a camisa ao máximo da luz e… A última casa, diferentemente das outras, era na horizontal. Porra, como nunca percebi isso… Fechar as janelas já não adiantava mais, o vapor já escapara pela marginal. Estava de volta o prisioneiro do alemão.
Imagem: Personificatie van de regen boven een landschap, 1921/Rijksmuseum