Há pássaros e há pássaros. Esse ficava em cima da estante nos observando durante todo o horário comercial. Se você ficasse quieto e não se mexesse muito, o que poderia ouvir dele eram as unhas roçando e batendo sem querer no ferro das prateleiras. Para o bicho, que ficava parado a maior parte do tempo, o breve movimento era apenas para acomodação.
Mas se você se levantasse ou fizesse motivos bruscos ele mexia as asas para trás como se tivesse tendo espasmos. E emitia um som idêntico ao nheco-nheco das cadeiras giratórias. Com certeza o processo evolutivo fez a espécie absorver o som.
Essa ave reina de braçadas naquele ambiente. As outras espécies apenas rodeavam o habitat sem ameaça nenhuma. A Corporatum focus griseo vive protegida por janelas pelo vidro. Urubus, pombos e alguns sabiás laranjeiras e pardais, que ousam frequentar aquela altura, já habituados ao reinado, apenas pousavam no parapeito em busca de breve descanso. Sem curiosidade, sem segundas intenções.
Não é fácil conviver com a espécie. Sobretudo porque ela é feia. De penas cinzentas escuras e
foscas e com um peito com tom cinza mais claro, o Corporatum focus griseo têm um semblante que lembra um homo sapiens. Fugimos a todo custo de cruzarmos com seu olhar. Quando olhos dele encontram os nossos, instintivamente seu bico vão pra baixo mas seu olhar não se move. Isso incomoda, pois com os pássaros nossa relação já é de estranheza. Não temos muito o que fazer com eles. Talvez isso explique a razão de colocarmos em gaiolas.
Essa relação é regra, salvo raríssimas exceções das histórias ouvidas pelas ruas daqueles que pegam pássaros ainda filhotes e os prendem na convivência com humanos. Mas, mesmo assim, sempre ficam bolando planos para se livrar da relação criada, pois com eles não temos estima natural. Nem eles com nós.
Pássaros desfrutam da imagem de liberdade, por isso é tão cruel limitarmos seus voos. Mas o
Corporatum focus griseo só vive para ser preso. E na convivência acabamos como eles. Mas, eis
que um dia, esse exemplar da acabou saindo de seu habitat de conforto. Estimulado pela escada esquecida ao lado da estante pelo pessoal da elétrica, o Corporatum focus griseo conseguiu descer.
Assistimos a tudo sem dar um pio. E continuamos assim quando ele passou por nós. Só não pude resistir ao ver que atrás daquela franja, que quase lhe encobria os olhos, tinha uma careca. Me veio à mente a imagem São Francisco de Assis. Olhei para os colegas e apenas arregalei os olhos. Foi naturalmente apelidado de Ave Xico. Ave Xico! Gritavam todos levantando o braço direito. Gozávamos todos. A visão do trajeto acabou quando não consegui mais virar os olhos. Desse ponto em diante só acompanhei o som das garras no chão até não ouvi-lo mais.
Foram dois meses de muitos pios. Abrimos as janelas para dar restos de bolacha para os pombos ou qualquer outra farelo que restasse dos nossos lanches. Capturávamos alguns pombos para sacrificar e os abríamos na espera dos urubus cumprirem sua natureza.
Imaginávamos a cerimônia de embalsamento do Ave Xico. Nenhum de nós queríamos estar de fora. Brigávamos para dividir as tarefas da operação. Para acalmar os ânimos, resolvemos fazer um sorteio. Dividimos as etapas e cada um fez a inscrição na que mais interessava. Eu me inscrevi e fui sorteado para a da curtição.
A etapa que mais atraiu interessados foi a da descarnagem. Mas eu acho que a da curtição é a mais interessante. Virar a pele do avesso, jogar areia quentíssima para secar toda a gordura e depois pincelar a pasta para impermeabilizar a pele até que ela fique couro. A parte da montagem só teve um candidato. Realmente, só colocar a palha e costurar não tem muita aventura. É como dar uma nova vida ao pássaro, agora pousado num pedestal. Montagem é trabalho para nostálgicos.
O gostoso mesmo é tirar, arrancar tudo pra fora. Rasgar o abdômen de ponta a ponta, puxar os órgãos, ossos e depois queimar todas as impurezas da pele. Mas tudo isso acabou quando entrou o pessoal da serralheria e instalou na beira da estante de ferro uma espécie de grade. Ficou uma estante com parapeito. E pela a altura já dava para adivinhar para quem era. Já não teve mais Ave Xico.
O nosso Corporatum focus griseo foi até o fim na sua descida. Acabou num descampado aqui do lado. Entrou em contato com a curiosidade e se meteu a caminho de um ninho de Quero-quero. A falta de experiência o colocou na pior situação. Não entendeu os gritos de afaste-se daqueles que protegiam o ninho. Não recuou e foi atacado.
Quem viu a cena disse que foi um massacre. Não sabendo voar, ou melhor, não sabia que sabia voar, ficou à mercê das bicadas. Parado. Dizem que os Quero-quero sentiram pena do Corporatum focus griseo, e por isso cessaram o ataque. O mais grave e perene dos ferimentos foi um olho furado, o esquerdo. A cicatriz ficou como se houvesse uma lágrima. Isso até deu um sentimento a ele. Mas só quando ele vai para lá se escorando no parapeito da estante.
Quando volta para cá, o olhar perturbador continua. Mas temos ainda uma esperança. Contamos que a solda não resista ao peso do bicho que fica o dia inteiro procurando uma posição cômoda, para o corpo e olhar. Para não haver briga combinamos que o sorteio é definitivo. Leve o tempo que leve.
Imagem: Arend, Peter van Liesebetten, after Wenceslaus Hollar, after Francis Barlow, 1654 – 1678/Rijksmuseum