Cefaloforia: guarde isso na cabeça

Saint-Denis representado na fachada da catedral de Notre-Dame de Paris

Não se assuste, mas somos cada vez mais seres cefalófores. Assim como aqueles santos, segundo a tradição cristã, que tiveram a cabeça decapitada e seguiram em frente com ela nas mãos. O mais conhecido é Saint Denis, da imagem (ou Denis de Paris) que ilustra o texto e que é padroeiro de Paris.

Ele foi o primeiro bispo de Paris. E foi condenado pelos romanos à decapitação, em meados do século 2, por ter convertido várias pessoas ao cristianismo. Decapitado aos pés de Montmartre, seguiu até o topo do monte carregando sua cabeça.

 cefaloforia

 O termo vem do grego kefalos, «cabeça», e foreo, «carregar».

Tirando o contexto religioso, a cefaloforia é a melhor imagem para ilustrar o que vivenciamos. Nossa cabeça está cada vez mais em nossas mãos. Confiamos a nossos celulares, tablets e outros ‘devices’ todos os registros de nossa vida. Nossas fotos, correspondências, agendas, senhas estão desmaterializadas em algum arquivo ou link.

O mesmo serve para o conhecimento e memória. Sempre que precisamos lembrar um fato ou evento vamos aos buscadores. De certa forma sempre foi assim. Mudou o suporte. Antes buscávamos os eventos no impresso (jornais, livros, enciclopédias etc).

Talvez alguém já esteja pensando que esse é mais um texto nostálgico. Ou alerta para uma catástrofe. Muito pelo contrário. Quero apenas apontar que em tempo de novidades, os problemas também são novos.

Por exemplo, alguém nascido nos últimos 10 anos, em sua idade adulta possa ter as fotos de seus bisavós, mas não da sua infância geradas digitalmente. E elas foram tiradas aos milhares. Talvez.

Os livros e as fotos ainda estão lá. O papel e outros suportes físicos estão aguentando o passar dos anos e dos séculos. Mas os formatos digitais, por natureza, são efêmeros. Aquele disquete, de 20 anos não tem mais o leitor, e se tivesse, provavelmente não poderia ser mais lido.

Quando pensamos na internet já podemos sentir o efeito. São quase 30 anos de internet no Brasil e muitos sites já sumiram. Ainda não nos demos conta do estrago porque não percebemos que sites fazem parte da história de um país sob diversos aspectos (econômico, político, social, cultural, linguístico etc).

O Orkut, a primeira rede social de quase todos nós, saiu do ar. E levou junto todas as nossas relações e parte das nossas histórias.

]Um dia alguém vai se dar conta que as redes sociais são tão importantes para as histórias de vida, como foram as correspondências. Você considera aquilo que publica nas redes sociais como parte da sua história?

Apagão virtual

Esse apagão virtual carrega um paradoxo. Se tivermos que contar a história do país dos últimos 20 anos teremos como fonte o impresso. Aquele suporte que vire e mexe dizem que está condenado à morte.

Mas há luz no fim do túnel. Muitas instituições em diversas partes do mundo estão coletando o conteúdo produzido na web. Infelizmente nenhuma do Brasil está entre elas.

Talvez venha logo de cara a ideia de que alguma instituição governamental seja a responsável pela guarda da internet. Mas não. A internet é um coletivo virtual e tem na sua síntese o conceito de trabalho em rede.

Imagino uma alternativa como tem sido feito em diversos países, em destaque os EUA, com diversas instituições, públicas e privadas, fazendo o arquivamento da web e conversando entre si.

Se a perda da cabeça transformou algumas pessoas em santos e mártires, a nossa cefaloforia não passará de uma grande dor de cabeça. E das grandes.

Para quem quiser saber mais sobre arquivamento web e memória na internet clique nesse link.

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