Tinha que entregar um conto. Tinha ele, não eu. Era com urgência. Ninguém sabia o porquê da pressa. Diante de tudo isso, resolveu dedicar o sábado inteiro à tarefa. Prometeu não dormir enquanto não o terminasse. Não ligaria o rádio. Não leria a pilha de jornais e revistas acumulada ao lado do sofá. Fumaria menos, passaria longe da garrafa de café. Mais, nem o faria. Seria um não para tudo. Definido a cumprir a tarefa, tirou tudo o que fosse possível da frente. Limpou a gaiola do passarinho, abasteceu com alpiste a água. Jogou o lixo fora. Ia desaparecer naquele dia. Nem foi avisar a Dona Irene da decisão, apesar de ter combinado encontrá-la para levá-la a dar uma volta com o Corcel que ganhara na promoção dos sabonetes Gessy. A modelista, vizinha do outro lado da rua, não dirigia, e ele era a única oportunidade de passear no que a sorte lhe trouxera. Saiu na surdina do apartamento somente para comprar cigarro e qualquer coisa para comer. Primeira folha rasgada, Retoma a escrever, titubeia, engata, começa a ir. Empaca. Segunda folha rasgada. Pensa em fazer um esqueminha da história que imaginava ter na cabeça. Não me pergunte sobre o que era, pois a onipresença tem seus limites. Era uma agonia vê-lo. Girava em círculos em busca de algo que nem mesmo sabia o que era. Algum tempo depois (não sei precisar quanto, pois me dei o direito de não testemunhar aquela agonia), a campainha toca. Também a escutei e fui ver o que acontecia. A campainha soou para ele como um livramento. Agora havia uma razão concreta para uma pausa sem culpa. De qualquer forma, não iria atendê-la. Talvez fosse a dona Elza pedindo algum favor ou lhe trazendo algum doce para manter a boa vizinhança. Ficou parado em silêncio até dar o tempo da pessoa entender que ali não estava ninguém. O único som escutado foi do lápis largado sobre as folhas. Passado algum tempo, e seguro da desistência do visitante, resolveu abrir uma exceção. Aquela, a fatal. Pediu desculpa a si mesmo e a tudo e a todos que lhe haviam colocado naquela situação vexaminosa em que se encontrava, e resolveu acender um cigarro. Uma exceção leva à outra, como bem sabemos. Resolveu, também, escutar um pouco de rádio no tempo do cigarro. Foi até a área de serviço para acendê-lo junto com o aparelho. Fumava e prestava atenção na rádio, onde o locutor contava os fatos estranhos e bem exclusivos acontecidos e por acontecer no ano. O homem pisara na lua. Seriam seis eclipses, quatro lunares e duas solares, se não me falha a memória. O Papa fez um motuo proprio rebaixando alguns santos. Parece que foram trinta. Entre eles, Santa Bárbara, Santa Claus (sim, o Papai Noel), São Jorge e São Cristovão, o padroeiro dos motoristas. Os integrantes da Congregação dos Ritos, departamento da igreja responsável pela classificação dos santos, talvez fossem recebidos a pauladas pelos rebaixados quando chegassem ao Paraíso, ironizou o locutor. Dos diversos fatos movimentando o ano estava também o lançamento de dois discos dos Beatles e talvez, segundo o locutor, “aqueles cabeludos fariam shows no Brasil ano que vem”.
Foram tantos fatos que ele acabou engatando um cigarro no outro. Olhando para o interno bege do prédio sentiu-se bem. Indescritivelmente bem. Virou para trás e olhou para as duas únicas coisas vivas naquele momento, o rádio e o passarinho. E percebeu uma esperança aproximando-se. Poderíamos chamar de luz no final do túnel ou epifania, se quiser. Olhou exclusivamente para o passarinho como se esperasse dele uma permissão e disse que faria o passeio prometido com dona Irene e contaria o que ouviu para ela. E, pensou ele, a modelista também teria muitas histórias para contar e ficaria feliz em saber das novidades. E mais feliz ainda quando soubesse que iriam até a igreja de São Cristovão, ali perto, no bairro da Luz, para abençoar o corcelzinho antes do santo ser realmente rebaixado. De quebra, se desse tempo, na volta passaria na dona Elza para contar o motivo da sua ausência, logo depois da vizinha lhe confessar que fora até seu apartamento e não o encontrou. Contaria que levou a dona Irene para estrear o carro e receber a benção dos padres. Mesmo tendo chegado tarde na igreja, quando os padres já não estavam mais em função, conseguiram convencê-los pela urgência do caso. Para completar, infernizaria a vizinha com a história da banda indecente que provavelmente estaria na cidade ano que vem.
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