Me contaram essa história de Carmela Occhiarino há muito tempo. E acho que chegou a hora de vocês saberem também. Carmela tinha um criado-mudo que não largava. Pequeno, mas pesado. O móvel de estimação era de madeira maciça escura e com puxadores de chumbo, com apenas duas gavetinhas fechadas à chave. Quando saia de casa, ou viajava por meses nas suas tournées pela Europa, Carmela o trancava em um armário, tão robusto quanto o seu criado-mudo.
Nenhum de seus criados tinham autorização para tocá-lo, nem se fosse para tirar a poeira com um paninho. Quando chegava das viagens a primeira coisa que fazia, antes mesmo de abrir as dezenas de malas com novidades trazidas do estrangeiro, era libertar seu criado-mudo do armário e se trancar no quarto provavelmente para verificar se o conteúdo estava intacto.
Muitos acreditam que o cuidado exagerado pelo criado-mudo era porque o móvel pertenceu ao grande patriarca da família, seu avô Nicola. Das coisas que herdou e herdaria dele, era a única neta, era o que mais prezava. Seus amigos achavam o comportamento poético. Mário e Osvald, seus amigos mais próximos, até rascunharam algumas obras para contar a paixão entre a mobília e a moça. Os pais de Carmela culpavam aquelas amizades, revistas, livros e suas viagens para o estrangeiro pelo comportamento estranho da filha. Mas tudo vai passar, acreditavam eles, assim que encontrasse alguém para casar.
Num domingo, daqueles em que a gente acha que nada vai acontecer, Carmela puxou a corda do sino do seu quarto e em pouco tempo apareceu uma das criadas. E passou a ela as instruções: era para o choffeur ir ao seu quarto, pegar o criado-mudo e colocá-lo no carro. Com a criada já de costas e com as ordens em mente, Carmela completou “ah, também prepare uma cesta com frutas e outras coisas”. A empregada entendeu que ela iria fazer um pic-nic. Avisou os pais que eles almoçariam sós. Eles responderam nem-sim nem-não para a atitude da filha. Apenas pronunciaram em pensamento o refrão “isso vai passar”.
O único ato dos pais foi pedir ao choffeur os detalhes da viagem e, claro, que não a deixasse entrar em apuros. A segunda ordem foi protocolar, pois Carmela não era de causar vergonhas em público e dificilmente prejudicaria outros. A preocupação dos pais era o que Carmela estava fazendo para si.
No carro o choffeur pergunta o destino. Carmela responde com precisão “pegue a Ponte Grande, vamos até Sant’Anna”. Sentada no banco da frente e com o criado-mudo acomodado no de trás, a viagem foi tranquila conforme se esperava, apenas alguns movimentos de soldados a cavalo ao redor do quartel da Força Pública antes de atravessar a ponte, e depois da travessia, pouco movimento. Depois de terminar a subida que levou a Sant’Anna, o choffeur perguntou onde parar.
Ficamos aqui, senhora?
Não, aqui tem muito movimento, e apontou o dedo para a rua que dava para a estação de bonde.
Ao ver uma carroça carregando um caixão em sentido contrário virando a rua em frente, Carmela teve a ideia, “vire à esquerda e faça o caminho daquela carroça”. O choffeur acatou a ordem, mas esperou um tempo antes de seguir porque alcançaria rapidamente a carroça se partisse subitamente. Com o carro parado com o motor ligado e balançando, Carmela olhou para trás e observou o criado-mudo.
Depois de não muito tempo com o carro acompanhando a carroça com o caixão, o choffeur pergunta se iriam até o cemitério. Carmela olhou para a esquerda antes de responder onde seria o fim da viagem. Como estavam quase em frente ao quartel do Exército pediu para andar mais um pouco. Quando encontrou um terreno plano que oferecesse uma visão ampla do outro lado da cidade pediu para encostar. O choffeur procurou uma árvore sabendo que a patroa buscaria uma sombra para o pin-nic e parou o carro próximo a ela.
Carmela não esperou que lhe abrisse a porta. Saiu entusiasmada e foi andando pelo terreno olhando a cidade. Enquanto isso o choffeur estendeu a toalha no chão e descarregou a cesta. De longe, Carmela disse para que ficasse à vontade para pegar algum alimento, e disse para não tirar o móvel do carro. Educadamente, com apenas um aceno de cabeça, agradeceu a oferta e entendeu a ordem. Em seguida, pegou seu farnel no chão do carro e se distanciou para almoçar. Já era meio-dia passado.
Para a nossa sorte o tempo estava bom, ceú azul com nuvens de algodão espalhadas, e ela pôde ver a cidade até quando os olhos alcançavam. À esquerda e à direita da sua visão, chaminés. Algumas delas com certeza foram do seu avô, agora são do seu pai e um dia seriam dela. Ao centro da paisagem, a cidade. Tentava adivinhar onde estava sua casa, mas não insistiu muito em chegar a uma conclusão. Na parte de baixo, o rio e algumas imagens minusculas que provavelmente seriam de alguns remadores se exercitando no rio. Atrás dela, o paredão da serra da Cantareira com algumas casinhas pontuando o verde.
“O senhor já veio por esses lados”, disse Carmela ao ver o choffeur voltando do almoço.
“Sim, a senhora também”, respondeu e completou: “tinha um restaurante alemão aqui. O senhor seu pai sempre vinha aqui.”. “É verdade, faz tempo, o restaurante se chamava Deuttsche Garten”. “Acho que é isso mesmo, parece que fechou pra mais de dez anos, ficava bem perto do Chora Menino”.
A conversa só não entrou mais em detalhes porque a ambos pararam para olhar a carroça que serviu de guia voltando vazia num trote com quase a mesma velocidade do carro. Os olhares a acompanharam até perdê-la de vista. Depois disso não teve mais conversa. Carmela se fechou e começou a esmagar um pão e espalhar as migalhas pelo chão. A única frase que se ouviu depois foi Carmela dizendo “já podemos voltar”.
As extravagâncias de Carmela nunca levaram seus pais a cogitar uma internação em algum sanatório para um tratamento dos nervos. Talvez tenham pensado. Mas só a verbalização seria uma vergonha e um grande estrago para os planos que eles naturalmente depositavam na filha. Afinal, toda a riqueza construída durante décadas caberia a ela cuidar. Nem mesmo a contratação de um administrador dos bens da família era pensada. O melhor era mentalizar e botar fé no “um dia isso passa”.
Foi o que fizeram quando o choffeur contou o que se passou na volta. Quase no fim da Ponte Grande, Carmela num tom de voz um pouco ríspido, incomum para os que viviam ao redor dela, pede para que o carro pare e retorne até o meio da ponte. O choffeur,assustado, pensou que ela estava passando mal por causa da descida cheia de freadas devido ao solo irregular. Pensou, mas não falou nada, só cumpriu o pedido.
No meio da ponte, ela sai do carro e começa a retirar sozinha o criado-mudo, apesar do choffeur ter oferecido ajuda. Com toda a força que tinha tirou de uma vez o móvel do carro e foi até o gradil da ponte e o jogou no rio. Alguns trabalhadores que tiravam areia do leito do rio pararam e alguns atletas tiraram os remos da água para diminuir a velocidade e tentar entender o que acontecia. O choffeur fez um sinal da ponte indicando que estava tudo bem.
Não se sabe o que levou Carmella a fazer aquilo. E, como era de se esperar, até hoje ninguém sabe o tinha naquele criado-mudo. A única certeza é que depois de ter sido jogado, o rio perdeu suas curvas, os igarapés, as coroas. Os terrenos foram arruados, a cidade perdeu as chaminés, as casas e a serra, o verde. Os “Occhiarino” e seus bens estão por ai e Carmela seguiu seu destino. Virou nome de rua, de prédio e sabor de pizza.
*Imagem – Vissersvrouw, Leo Gestel, 1924 – 1941