Del’Ortiga, o velho missivista

Maison de Victor Hugo - Hauteville House

Acordar, ir até a porta da casa, faça frio, faça sol, e pegar os jornais. Depois, com uma caneca de café na mesa abri-los e começar a fazer apontamentos à mão em blocos de papel.

Parece uma cena saída da década de 1990 ou de tempos anteriores. Mas é Eclésio Del’Ortiga atuando no papel que mais gosta, o de missivista. O aposentado, nascido na Espanha e emigrado para o Brasil fugindo o franquismo, tem o hábito de escrever cartas desde a década de 1960.

“Como não podia votar (Del’Ortiga não é naturalizado brasileiro, apesar de ter esse direito) nem participar da política interna do Brasil, escrever cartas aos jornais para mim é a maneira de participar da política”, confessa o espanhol.

Missiva

( mis·si·va )
substantivo feminino
Carta, epístola ou bilhete que se manda a alguém.

“missivas”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/missivas.

O missivista não tem ideia de quantas cartas mandou durante esses 60 anos. Calcule ai, disse para a reportagem, pegue uma carta por dia e multiplique por 63 anos. Seguindo suas ordens, calculamos que foi algo em torno de 22.600 cartas.

Eclésio Del'Ortiga quando era um jovem missivista. Óleo sobre tela, 1960
Eclésio Del’Ortiga quando era um jovem missivista. Óleo sobre tela, 1960*

Fora as as enviadas para a prefeitura, para a administração regional e para a Sabesp. Del’Ortiga mora no Pari, um bairro central de São Paulo às margens do rio Tietê, que até o ano passado não possuía rede de esgoto, “era um cheiro insuportável que acabava com meu humor”, disse agora mais aliviado porque as obras terminaram.

Perguntado se escrevia outro estilos, Del’Ortiga, chegou do fundo da sala um ‘não’ cheio e redondo. Vinha de Dona Idalina, sua esposa. “Não, de maneira alguma”, e completou Idalina para mim nunca se atreveu a escrever uma carta de amor desde que nos conhecemos”. A cara de alívio de ter rede de esgotos depois de tantas décadas esvaiu-se. Mexendo no bigode concordou com a esposa dizendo que ela não era espanhola, mas era brava como se fosse.

O casal se conheceu em um dos lugares em que o missivista mais frequentava, numa banca de jornal. Idalina também ia até a banca para comprar exemplares do Reader’s Digest, explicou. O casal está junto desde 1965. Fizeram dois filhos e esses lhes deram 5 netos.

Mas nenhum seguiu o hábito do pai, infelizmente nos confessa. Mas isso não o desanima. Nem o desaparecimento dos jornais impressos, para ele escrever cartas é algo insuperável.

O professor Hamilton Denvers, da faculdade de Jornalismo de Columbia, nos Estados Unidos, vem estudando há décadas o ‘misssivismo’ como algo imprescindível do jornalismo. O autor de ‘Letter Writers, the Journalist Wasted by Journalism” (“Missivistas, o jornalista desperdiçado pelo jornalismo”, em tradução livre) fez um enorme tratado sobre a importância desse personagem que participa ativamente do dia a dia das redações. Denvers elenca diversas vantagens de aproximar essa figura da redação.

Entre elas as novas abordagens que levadas por eles para o ambiente da redação e um conteúdo de vem de graça para o meio de comunicação, “opinião é de graça”, frisa o estudioso. “Os editorialistas poderiam dar lugar aos missivistas. Financeiramente seria uma bela economia para o órgão”. Para manter a qualidade, “bastaria de um curador”, explicou o professor em entrevista feita para o Antesdemaisnada.com.br.

Denvers vai mais longe e provoca o jornalismo a quebrar um paradigma, ‘as missivas não deveriam estar restritas ao espaço do leitor, mar serem reunidas em uma editoria e/ou estarem espalhadas em todas as editorias, como se fosse uma suíte das matérias’. Para ele, gente como Del’Ortiga tem o valor desprezado pelas empresas de comunicação. Ainda mais no jornalismo feito no digital onde o espaço é infinito e a interação é fundamental.

Caricature de Jules Janin, Vers 1840, Maison de Victor Hugo - Hauteville House
Caricature de Jules Janin, Vers 1840, Maison de Victor Hugo – Hauteville House

Na era das redes sociais o interesse pelo o que o semelhante escreve, ou seja outro internauta, é valorizado enormemente, basta ver o sucesso e a centralidade que as redes sociais exercem na mídia, explica o professor. Se formos resumir o que Denvers propõe, podemos dizer que o jornalismo não está preparado para essa discussão.

Escrever cartas para os jornais é quase natural para gente como Del’Ortiga. Essa é a tese de outro livro que explora o assunto, “Fingers Up: The Power of Commentator Readers” (em tradução livre, Dedos em riste: a força dos leitores comentadores) de Dayse Flowers. A pesquisadora do instituto de jornalismo de Michigan publicou o trabalho no limiar da passagem do analógico para o digital, mas para ela o fenômeno, não mudou com a popularização dos meios de comunicação digital. Ela chega na mesma conclusão de Denvers, é uma força que não usada. “Se as pessoas querem ver os que as outras semelhantes como ela escrevem”, cotinua, “por que as empresas não usam essa força?”.

Para ambos a resposta é a mesma só que em palavras diferentes. Leitores/comentadores não são aceitos como produtores de conteúdo, são vistos como chatos. “Chatos que compram o produto que eles produzem”, completa Flowers.

Colocamos nosso missivista diante desses questionamentos. Abaixou a cabeça para pensar e disse depois de um tempo em espanhol “a mí me da igual“. Apesar da indiferença, ficou nítido que houve nele um sentimento de rejeição.

A primeira missiva

Parecia que estava esperando pela pergunta ‘como foi a primeira carta enviada?’, mal terminamos a pergunta e nosso missivista já começou a responder. “Foi quando teve a eleição presidencial, quando Jânio foi eleito”. Del’Ortiga, surpreendentemente lembra palavra por palavra. Aumenta o tom de voz e a repete “A eleição de Jânio Quadros não é o principal fato do último pleito. Mas, sim, a figura do vice que representa a continuidade do ‘velho'”. Del’Ortiga se referia à eleição de João Goulart como vice-presidente e de sua proximidade com o trabalhismo de Getúlio Vargas, o ‘Velho’ a quem se referia na carta . “E acertei, não?”, pergunta com orgulho. “E esse ‘velho’ ainda está por ai, não é?”, completa. A primeira carta não foi publicada.

A trecho lembrado era apenas um pedaço, pois a carta era muito maior. A primeira carta publicada ele também se lembra. Foi em março de 1964 e era sobre uma pequena nota sobre a reforma agrária pretendida por Jango. O projeto pretendia desapropriar cinco quilômetros de terra a partir das margens das estradas, em síntese, disse o escritor escrevi sobre o conceito de desapropriação e que outras coisas é que deveriam ser desapropriadas”. “Você entendeu o que quis dizer, certo?‘, completa. Esse recorte e centenas de outros o autor não os possui mais. Foram perdidos, como tantas outras coisas, em uma das muitas inundações que o bairro sofreu durante décadas.

Sabores e desgostos dos metiêrs

Eclésio Del’Ortiga quando chegou ao Brasil abriu uma sapataria no bairro vizinho do Belém. Ali movimento era grande quantidade de fábricas. Em seguida, abriu uma pequena loja de sapatos, mas sempre mantendo o serviço de sapateiro funcionando. O negócio ia bem até o começo da desindustrialização ocorrida nos governos FHC que inundou o mercado de produtos importados a fim de conter a inflação.

O fechamento das indústrias e a chegada de calçados descartáveis e que não possuem conserto fizeram o negócio do espanhol minguar. Até em que na virada do século, ele resolveu fechar a loja. Passou a viver da aposentadoria do INSS, a qual contribuiu religiosamente por 35 anos.

A família também contava com a aposentadoria de professora da rede municipal da Dona Idelina. Durante esses mais de 30 anos no metiê dos calçados, Del’Ortiga dividiu sem esforço com aquele que mais gosta de fazer que é escrever cartas, mesmo que não tenha remuneração.

Ao começar perceber que passou uma vida dedicado a dois trabalhos, um que o sustentou e a sua família também, e outro que o orgulha, a face de escritor foi inundada por uma emoção que só não continuou e resultou com os olhos cheios d’água porque Dona Idalina estava chegando da cozinha com café e as galetitas que tanto o marido gosta.

Repôs a postura, voltou à face sisuda e disse que o papel de missivista está cada vez mais difícil por causa da redução do espaço dos leitores nos jornais e pela sumiço contínuo dos jornais impressos. Perguntei sobre e questionei sobre a possibilidade ilimitada do espaço e sites para escrever cartas que o formato digital passou a oferecer.

A reposta final da entrevista foi simples, de certa forma o papel de missivista não se compara com os ‘batedores de boca’ dos sites. São coisas diferentes, disse. Uma coisa é raciocinar, “saber entrar no debate e entrar num embate com as emoções e razões daquele que irá selecionar a carta para ser publicada, há uma seleção, há um jogo e algo a ganhar”. Del’Ortiga, concorda que o formato digital trouxe muitos benefícios para a sociedade, para o mundo, mas para os missivistas foi o sufocamento da arte de escrever cartas ao jornais. Foi a terceira inundação da vida de Eclésio Del’Ortiga

*Imagem: Portrait of a Man, Frans Hals, c. 1635, Rijksmuseum

Posts


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *